Por Laís Amaral
Dia desses escrevi na minha coluna no
jornal Beira-Rio sobre minha impaciência com a selfiemania que anda por
aí. A motivação foi compartilhar o pensamento de que esse exacerbado narcisismo
foi posto à tona pelas facilidades oferecidas pela tecnologia.
O que antes era privilégio do espelho, revelar a
face oculta, o excesso de vaidade (um pecado ?), e que se limitava aos poucos
locais onde o reflexo era possível, com a facilidade de fotografar e, principalmente,
se fotografar (como a olhar-se no espelho) não há fronteiras, nem limites.
Fotografa-se e se autofotografa em
todos os lugares e sob qualquer circunstância, sem um resquício sequer de
pudor, se podemos dizer assim.
No brilhante texto que me foi enviado
pelo amigo Zé Marcos Vieira, a jornalista Eliane Brum, do El País, destrincha
toda essa parada só que indo muito mais fundo.
Ela fala como as redes sociais - e
aí muito mais que as inofensivas selfies – abriram as comportas para que velhos
monstros que viviam enclausurados nos calabouços conceituais da civilização se
dessem à luz mostrando o quanto de barbárie é composto suas células. Preconceito,
ódio, e uma intolerância que chega às raias da não aceitação do outro, propugnando quase sempre, sua eliminação.
O texto
é longo mas fundamental. Acende um holofote sobre a tumultuada e obscura realidade
dos dias atuais. Vale muito a pena ler.
A Boçalidade do Mal
Eliane Brum
Em 19 de fevereiro, Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda dos
governos de Lula e de Dilma Rousseff, estava na lanchonete do Hospital
Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quando foi hostilizado por uma mulher,
com o apoio de outras pessoas ao redor.
Os gritos: “Vá pro SUS!”. Entre eles, “safado” e “fdp”. Mantega
era acompanhado por sua esposa, Eliane Berger, psicanalista. Ela faz um longo
tratamento contra o câncer no hospital, mas o casal estava ali para visitar um
amigo. O episódio se tornou público na semana passada, quando um vídeo mostrando
a cena foi divulgado no YouTube.
Entre as várias questões importantes sobre o momento atual do Brasil –
mas não só do Brasil – que o episódio suscita, esta me parece particularmente
interessante:
“Que passo é esse que se dá entre a discordância com relação à política
econômica e a impossibilidade de sustentar o lugar do outro no espaço
público?”.
A pergunta consta de uma carta escrita pelo Movimento Psicanálise,
Autismo e Saúde Pública (MPASP), que encontrou na cena vivida por Guido e
Eliane ecos do período que antecedeu a Segunda Guerra, na Alemanha nazista,
quando se iniciou a construção de um clima de intolerância contra judeus, assim
como contra ciganos, homossexuais e pessoas com deficiências mentais e/ou
físicas.
O desfecho todos conhecem. Em apoio a Guido e Eliane, mas também pela
valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende milhões de brasileiros,
o MPASP lançou a hashtag#VamosTodosProSUS.
Pode-se aqui fazer a ressalva de que
a discordância vai muito além da política econômica e que o ex-ministro petista
encarnaria na lanchonete de um dos hospitais privados mais caros do país algo
bem mais complexo.
Mas a pergunta olha para um ponto preciso do cotidiano atual do Brasil:
em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos,
se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista? E, assim, é
preciso eliminá-lo, seja expulsando-o do lugar, como no caso de Guido e Eliane,
seja eliminando sua própria existência – simbólica, como em alguns projetos de
lei que tramitam no Congresso, visando suprimir direitos fundamentais dos povos
indígenas ou de outras minorias; física, como nos crimes de assassinato por
homofobia ou preconceito racial.
O que significa, afinal, esse passo a mais, o limite ultrapassado, que
tem sido chamado de “espiral de ódio” ou “espiral de intolerância”, num país
supostamente dividido (e o supostamente aqui não é um penduricalho)? De que
matéria é feita essa fronteira rompida?
A descoberta de que aquele vizinho simpático com
quem trocávamos amenidades no elevador defende o linchamento de homossexuais
tem um impacto profundo
A resposta admite muitos ângulos. Na minha hipótese, entre tantas
possíveis, peço uma espécie de licença poética à filósofa Hannah Arendt, para
brincar com o conceito complexo que ela tão brilhantemente criou e chamar esse
passo a mais de “a boçalidade do mal”. Não banalidade, mas boçalidade mesmo.
Arendt, para quem não lembra, alcançou “a banalidade do mal” ao
testemunhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, e perceber
que ele não era um monstro com um cérebro deformado, nem demonstrava um ódio
pessoal e profundo pelos judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem
e de mal.
Eichmann era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava apenas
ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente ao desempenhar seu
papel no assassinato de milhões de seres humanos. Eichmann seria só mais um
burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal
se instala na ausência do pensamento.
A boçalidade do mal, uma das explicações possíveis para o atual momento,
é um fenômeno gerado pela experiência da internet. Ou pelo menos ligado a ela.
Desde que as redes sociais abriram a possibilidade de que cada um expressasse
livremente, digamos, o seu “eu mais profundo”, a sua “verdade mais intrínseca”,
descobrimos a extensão da cloaca humana.
Quebrou-se ali um pilar fundamental da convivência, um que Nelson
Rodrigues alertava em uma de suas frases mais agudas: “Se cada um soubesse o
que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”.
O que se passou foi que descobrimos não apenas o que cada um faz entre
quatro paredes, mas também o que acontece entre as duas orelhas de cada um.
Descobrimos o que cada um de fato pensa sem nenhuma mediação ou freio.
E descobrimos que a barbárie íntima e cotidiana sempre esteve lá, aqui,
para além do que poderíamos supor, em dimensões da realidade que só a ficção
tinha dado conta até então.
Descobrimos, por exemplo, que aquele vizinho simpático com quem
trocávamos amenidades bem educadas no elevador defende o linchamento de homossexuais.
E que mesmo os mais comedidos são capazes de exercer sua crueldade e
travesti-la de liberdade de expressão.
Nas postagens e comentários das redes sociais, seus autores deixam claro
o orgulho do seu ódio e muitas vezes também da sua ignorância. Com frequência
reivindicam uma condição de “cidadãos de bem” como justificativa para cometer
todo o tipo de maldade, assim como para exercer com desenvoltura seu racismo,
sua coleção de preconceitos e sua abissal intolerância com qualquer diferença.
Foi como um encanto às avessas – ou um desencanto. A imagem devolvida
por esse espelho é obscena para além da imaginação.
Ao libertar o indivíduo de suas amarras sociais, o que apareceu era
muito pior do que a mais pessimista investigação da alma humana. Como qualquer
um que acompanha comentários em sites e postagens nas redes sociais sabe bem, é
aterrador o que as pessoas são capazes de dizer para um outro, e, ao fazê-lo, é
ainda mais aterrador o que dizem de si.
Como o Eichmann de Hannah Arendt, nenhum desses tantos é um tipo de
monstro, o que facilitaria tudo, mas apenas ordinariamente humano.
Ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem
máscaras, a internet arrancou da humanidade a ilusão sobre si mesma.
Ainda temos muito a investigar sobre como a internet, uma das poucas
coisas que de fato merecem ser chamadas de revolucionárias, transformaram a
nossa vida e o nosso modo de pensar e a forma como nos enxergamos. Mas acho que
é subestimado o efeito daquilo que a internet arrancou da humanidade ao
permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras: a ilusão sobre si mesma.
Essa ilusão era cara, e cumpria uma função – ou muitas – tanto na
expressão individual quanto na coletiva. Acho que aí se escavou um buraco bem
fundo, ainda por ser melhor desvendado.
Como aprendi na experiência de escrever na internet que não custa
repetir o óbvio, de forma nenhuma estou dizendo que a internet, um sonho tão
estupendo que jamais fomos capazes de sonhá-lo, é algo nocivo em si. A mesma
possibilidade de se mostrar, que nos revelou o ódio, gerou também experiências
maravilhosas, inclusive de negação do ódio.
Assim como permitiu que pessoas pudessem descobrir na rede que suas
fantasias sexuais não eram perversas nem condenadas ao exílio, mas passíveis de
serem compartilhadas com outros adultos que também as têm.
Do mesmo modo, a internet ampliou a denúncia de atrocidades e a
transformação de realidades injustas, tanto quanto tornou o embate no campo da
política muito mais democrático.
Meu objetivo aqui é chamar a atenção para um aspecto que me parece muito
profundo, e, definidor de nossas relações atuais. A sociedade brasileira, assim
como outras, mas da sua forma particular, sempre foi atravessada pela
violência.
Fundada na eliminação do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos
negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do diferente como pessoa, e
seus ecos continuam fortes. A internet trouxe um novo elemento a esse contexto.
Quero entender como indivíduos se apropriaram de suas possibilidades para
exercer seu ódio – e como essa experiência alterou nosso cotidiano para muito
além da rede.
Finalmente era possível “dizer tudo”, e isso passou
a ser confundido com autenticidade e liberdade.
É difícil saber qual foi a primeira baixa. Mas talvez tenha sido a do
pudor. Primeiro, porque cada um que passou a expressar em público ideias que
até então eram confinadas dentro de casa ou mesmo dentro de si, descobriu, para
seu júbilo, que havia vários outros que pensavam do mesmo jeito.
Mesmo que esse pensamento fosse incitação ao crime, discriminação
racial, homofobia, defesa do linchamento. Que chamar uma mulher de “vagabunda”
ou um negro de “macaco”, defender o “assassinato em massa de gays”, “exterminar
esse bando de índios que só atrapalham” ou “acabar com a raça desses
nordestinos safados” não só era possível, como rendia público e aplausos.
Pensamentos que antes rastejavam pelas sombras passaram a ganhar o palco
e a amealhar seguidores. E aqueles que antes não ousavam proclamar seu ódio
cara a cara, sentiram-se fortalecidos ao descobrirem-se legião. Finalmente era
possível “dizer tudo”. E dizer tudo passou a ser confundido com autenticidade e
com liberdade.
Para muitos, havia e há a expectativa de que o conhecimento transmitido
pela oralidade, caso de vários povos tradicionais e de várias camadas da
população brasileira com riquíssima produção oral, tenha o mesmo reconhecimento
na construção da memória que os documentos escritos.
Na experiência da internet, aconteceu um fenômeno inverso: a escrita,
que até então era uma expressão na qual se pesava mais cada palavra, por
acreditar-se mais permanente, ganhou uma ligeireza que historicamente esteve
ligada à palavra falada nas camadas letradas da população.
As implicações são muitas, algumas bem interessantes, como a apropriação
da escrita por segmentos que antes não se sentiam à vontade com ela. Outras
mostram as distorções apontadas aqui, assim como a inconsciência de que cada um
está construindo a sua memória: na internet, a possibilidade de apagar os
posts é uma ilusão, já que quase sempre eles já foram copiados e replicados por
outros, levando àimpossibilidade do esquecimento.
O fenômeno ajuda a explicar, entre tantos episódios, a resposta de
Washington Quaquá, prefeito de Maricá e presidente do PT fluminense, uma figura
com responsabilidade pública, além de pessoal, às agressões contra Guido
Mantega.
Em seu perfil no Facebook, ele sentiu-se livre para expressar sua
indignação contra o que aconteceu na lanchonete do Einstein nos seguintes
termos: “Contra o fascismo a porrada. Não podemos engolir esses fascistas
burguesinhos de merda! (...) Vamos pagar com a mesma moeda: agrediu, devolvemos
dando porrada!”.
O outro, se não for um clone, só existe como
inimigo
O ódio, e também a ignorância, ao serem compartilhados no espaço público
das redes, deixaram de ser algo a ser reprimido e trabalhado, no primeiro caso,
e ocultado e superado, no segundo, para ser ostentado. E quando me refiro à
ignorância, me refiro também a declarações de não saber e de não querer saber e
de achar que não precisa saber.
Me arrisco a dizer que havia mais chances quando as pessoas tinham
pudor, em vez de orgulho, de declarar que acham museus uma chatice ou que não
leram o texto que acabaram de desancar, porque pelo menos poderia haver uma
possibilidade de se arriscar a uma obra de arte que as tocasse ou a descobrir
num texto algo que provocasse nelas um pensamento novo.
Sempre se culpa o anonimato permitido pela rede pelas brutalidades ali
cometidas. É verdade que o anonimato é uma realidade, que há os “fakes” (perfis
falsos) e há toda uma manipulação para falsificar reações negativas a
determinados textos e opiniões, seja por grupos organizados, seja como tarefa
de equipes de gerenciamento de crise de clientes públicos e privados.
Tanto quanto há campanhas de desqualificação fabricadas como
“espontâneas”, nas quais mentiras ou boatos são disseminados como verdades
comprovadas, causando enormes estragos em vidas e causas.
Mas suspeito que, no que se refere ao indivíduo, a notícia – boa ou má –
é que o anonimato foi em grande medida um primeiro estágio superado. Uma
espécie de ensaio para ver o que acontece, antes de se arriscar com o próprio
RG. Não tenho pesquisa, só observação cotidiana.
Testemunho dia a dia o quanto gente com nome e sobrenome reais é capaz
de difundir ódio, ofensas, boatos, preconceitos, discriminação e incitação ao
crime sem nenhum pudor ou cuidado com o efeito de suas palavras na destruição
da reputação e da vida de pessoas também reais.
A preocupação de magoar ou entristecer alguém, então, essa nem é levada
em conta. Ao contrário, o cuidado que aparece é o de garantir que a pessoa
atacada leia o que se escreveu sobre ela, o cuidado que se toma é o da certeza
de ferir o outro. O outro, se não for um clone, só existe como inimigo.
Na eleição de 2014, descobriu-se que os bárbaros eram até ontem os
aliados na empreitada da civilização.
O problema, quando se aponta os “bárbaros”, e aqui me incluo, é
justamente que os bárbaros são sempre os outros. Neste sentido, a eleição de
2014, da qual derivou a tese, para mim bastante questionável, do “Brasil
partido”, bagunçou um bocado essa crença.
Não foi à toa que amizades antigas se desfizeram, parentes brigaram e
até amores foram abalados, que até hoje há gente que se gostava que não voltou
a se falar. As redes sociais, a internet, viraram um campo de guerra, num nível
maior do que em qualquer outra eleição ou momento histórico. Só que, desta vez,
os bárbaros eram até ontem os aliados na empreitada da civilização.
Descobriu-se então que pessoas com quem se compartilhou sonhos ou
pessoas que se considerava éticas – pessoas do “lado certo” – eram capazes de
lançar argumentos desonestos – e que sabiam ser desonestos – e até mentiras
descaradas, assim como de torturar números e manipular conceitos.
Eram capazes de fazer tudo o que sempre condenaram, em nome do objetivo
supostamente maior de ganhar a eleição. Os bárbaros não eram mais os outros, os
de longe.
Desta vez, eram os de perto, bem de perto, que queriam não apenas
vencer, mas destruir o diferente ou o divergente, eu ou você. O bárbaro era um
igual, o que torna tudo mais complicado.
Não se sai imune desse confronto com a realidade do outro, a parte mais
fácil. Não se sai impune desse confronto com a realidade de si, este um
enfrentamento só levado adiante pelos que têm coragem.
Como sabemos, enquanto for possível e talvez mesmo quando não seja mais,
cada um fará de tudo para não se enxergar como bárbaro, mesmo que para isso
precise mentir para si mesmo. É duro reconhecer os próprios crimes, assim como
as traições, mesmo as bem pequenas, e as vilanias. Mas, no fundo, cada um sabe
o que fez e os limites que ultrapassou.
O que aconteceu na eleição de 2014 é que os bons e os limpinhos
descobriram algumas nuances a mais de sua condição humana, e descobriram o
pior: também eles (nós?) não são capazes de respeitar a opinião e a escolha
diferente da sua. Também eles (nós?) não quiseram debater, mas destruir.
De repente, só havia “haters” (odiadores). De novo: desse confronto não
se sai impune. A boçalidade do mal ganhou dimensões imprevistas.
A experiência poderosa de se mostrar sem recalques
transcendeu e influenciou a vida para além das redes.
Seria improvável que a experiência vivida na internet, na qual o que
aconteceu nas eleições foi apenas o momento de maior desvendamento, não mudasse
o comportamento quando se está cara a cara com o outro, quando se está em carne
e osso e ódio diante do outro, nos espaços concretos do cotidiano.
Seria no mínimo estranho que a experiência poderosa de se manifestar sem
freios, de se mostrar “por inteiro”, de eliminar qualquer recalque individual
ou trava social e de “dizer tudo” – e assim ser “autêntico”, “livre” e
“verdadeiro” – não influenciasse a vida para além da rede.
Seria impossível que, sob determinadas condições e circunstâncias, os
comportamentos não se misturassem. Seria inevitável que essa “autorização” para
“dizer tudo” não alterasse os que dela se apropriaram e se expandisse para outras
realidades da vida. E a legitimidade ganhada lá não se transferisse para outros
campos.
Seria pouco lógico acreditar que a facilidade do “deletar” e do
“bloquear” da internet, um dedo leve e só aparentemente indolor sobre uma
tecla, não transcendesse de alguma forma. Não se trata, afinal, de dois mundos,
mas do mesmo mundo – e do mesmo indivíduo.
A mulher que se sentiu “no direito” de xingar Guido Mantega e por
extensão Eliane Berger, e tornar sua presença na lanchonete do hospital
insuportável, assim como as pessoas que se sentiram “no direito” de aumentar o
coro de xingamentos, possivelmente acreditem que estavam apenas exercendo a
liberdade de expressão como “cidadãos de bem indignados com o PT”, uma frase
corriqueira nos dias de hoje, quase uma bandeira.
Ao mandar Guido e Eliane para outro lugar – e não para qualquer lugar,
mas “pro SUS” – devem acreditar que o Sistema Único de Saúde é a versão
contemporânea do inferno, para a qual só devem ir os proscritos do mundo.
Possivelmente acreditem também que o espaço do Hospital Israelita Albert
Einstein deve continuar reservado para uma gente “diferenciada”.
Em nenhum momento parecem ter enxergado Guido e Eliane como pessoas, nem
se lembrado de que quem está num hospital, seja por si mesmo, seja por alguém
que ama, está numa situação de fragilidade semelhante a deles. O direito ao
ódio e à eliminação do outro mostrou-se soberano: aquele que é diferente de
mim, eu mato. Ou deleto. Simbolicamente, no geral; fisicamente, com frequência
assustadora.
Mas, claro, nada disso é importante. Nem é importante a greve dos
caminhoneiros ou a falta de água na casa dos mais pobres. Tampouco a destruição
de estátuas milenares pelo Estado Islâmico.
Essencial mesmo é o grande debate da semana que passou: descobrir se o
vestido era branco e dourado – ou preto e azul. Até mesmo sobre tal
irrelevância, a selvageria do bate-boca nas redes mostrou que não é possível
ter opinião diferente.
Já demos um passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade.
Eliane
Brum é escritora, repórter e documentarista.
Autora dos livros de não ficção Coluna
Prestes - o Avesso da Lenda, A
Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua,A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do
romance Uma Duas. Site:desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: