 |
Os cardeais são na maioria conservadores |
Por Lais Amaral
Outro dia ouvi de
uma pessoa amiga, a respeito da rumorosa renúncia do Papa, a expressão: “foi um
gesto de muita coragem !”. Uma frase que por sinal já ouvira da boca de muitos
analistas da nossa imprensa. Não que meu amigo estivesse apenas repetindo um
jargão empacotado pela Mídia.
Como costuma
acontecer, estava sendo levado a aderir, subliminarmente, ao pensamento único. Até
porque exprimir opiniões mornas sobre celebridades do porte de um Papa costuma dar
mesmo em lugar comum. Afinal, o homem tem status de representante de Deus na
Terra.
Mas eu, como não
sou católico, posso olhar desapaixonado a questão e relativizar essa coragem. Os
oito anos de Bento 16 no Vaticano foram marcados por denúncias de abusos
sexuais não apurados (ou não punidos), escândalos de vários matizes envolvendo
o Banco do Vaticano e a briga pelo poder interno.
Ele (Bento) tinha nas mãos
a faca e o queijo, ou se preferirem, o cálice e o cibório, e resolveu deixar a
solução do imbróglio, incluindo um suposto e cabeludo dossiê sobre as entranhas
do Vaticano, para seu sucessor. Um presentão de grego. Não vejo isso como um
gesto de coragem.
O que me parece é
que a Igreja Católica vive uma crise apocalíptica, de aparente
irreversibilidade. Especula-se que um Papa negro ou originário de um país
americano, como o Brasil - a maior população católica do mundo, poderia estancar
essa hemorragia.
Mas uma reforma
aguda não deverá acorrer. Tirando o simbolismo inútil, não vai importar a cor
da pele ou a nacionalidade do novo Papa, já que a maioria dos 115 cardeais que
participarão do Conclave foi escolhida pelo próprio Joseph Ratzinger. São da
sua linha ultra-conservadora.
Bento 16 é o mesmo
Ratzinger, que na análise do teólogo norte-americano Mattheu Fox, foi um
autêntico inquisidor durante a gestão de Wojtila (João Paulo II), esmagando os
opositores da sua corrente de pensamento. Foram expulsos mais de cem teólogos,
entre os quais, o frei Leonardo Boff e o próprio Mattheu Fox.
Muitos dos adeptos
da Teologia da Libertação, a chamada opção preferencial pelos pobres, uma espécie
de volta às origens, de reaproximação com o que teria dito Jesus, e que prosperou
a partir do Concílio Vaticano 2º, foram substituídos por membros do Opus Dei, um
setor ultra-conservador da Igreja.
Enquanto a fumaça
não vem, especula-se, o que é um exercício normal. Mas deveríamos ser mais
céticos diante dos clichês que insistem, dissimuladamente, em se passarem como
nossas conclusões genuínas.
Segue abaixo a
entrevista concedida por Mattheu Fox aos jornalistas Amy Googman e Juan
Gonzalez no Democracy Now.
O Retorno da Inquisição
e a difícil renovação
da Igreja Católica
A entrevista foi traduzida e publicada no Blog Outras Palavras. Nela o
teólogo Mattheu Fox revela como os papas Ratzinger e Wojtyla reintroduziram a
Inquisição, perseguiram divergentes e tornaram quase impossível renovação da
Igreja. (Lais Amaral)
Tradução:Gabriela
Leite
Desde que
o Papa Bento XVI formalmente se retirou, na quinta-feira, dia 28 de fevereiro, as
especulações passaram a ser sobre quem vai substituí-lo.
Na
quarta, Bento deu um adeus emotivo em sua última audiência geral, dizendo que
compreendia a gravidade de sua decisão de tornar-se o primeiro pontífice a
renunciar, em um período de cerca de 600 anos.
Com 85
anos de idade, apontou sua saúde frágil como razão para a partida. Dirigindo-se
a cerca de 150 mil fiéis na Praça de São Pedro, disse que está renunciando pelo
bem da Igreja.
O mandato do papa Bento foi marcado por muitos escândalos, talvez mais
notadamente por sua postura diante dos abusos sexuais. Há alegações de que
ignorou ao menos um caso assim, quando era cardeal.
Documentos
mostram que, em 1985, o estão cardeal Ratzinger adiou esforços para afastar um
padre condenado por abusar de crianças. Enquanto isso, Bento supervisionou, no
ano passado, uma sentença do Vaticano segundo a qual o maior e mais influente
grupo de freiras católicas norte-americanas sofria “sérios problemas
doutrinários”, por ter questionado os ensinamentos da Igreja sobre pontos como
homossexualidade e a proibição das mulheres exercerem o sacerdócio.
Mais
recentemente, novas fontes italianas revelam que três cardeais foram
investigados por terem vazado documentos que mostram a corrupção sem limites
nos postos do Vaticano.
Para saber mais, fomos a San
Francisco, onde entrevistamos o teólogo MatthewFox. Ele é autor de mais de
vinte livros, o mais recente dos quais é “The Pope’s War: Why Ratzinger’s
Secret Crusade Has Imperiled the Church and How It Can Be Saved” (tradução
livre: “A guerra do Papa: Por que a cruzada secreta de Ratzinger ameaçou a
Igreja e como ela pode ser salva”).
Fox é um ex-padre católico, que foi primeiro impedido de ensinar a
Teologia da Libertação e Espiritualidade da Criação pelo então cardeal
Ratzinger. Mais tarde, foi expulso pela Ordem Dominicana, à qual pertenceu por
34 anos. Hoje é padre na Igreja Episcopal.
Eis sua entrevista:
Amy
Goodman: Bem vindo ao Democracy Now! Você pode começar respondendo sobre a
renúncia do Papa e seu significado?
Obrigado. Eu realmente aprecio o jornalismo de vocês. Ele
significa muito, para muitos de nós.
Penso que eu vou acreditar na palavra do Papa, quando ele diz
que está cansado. Eu estaria cansado também, se tivesse deixado atrás de meu
mandato tanta devastação, como ele fez, primeiro como inquisidor-geral durante
o papado anterior.
Bento
trouxe de volta a Inquisição. É verdade que fui um dos teólogos expulsos por
ele, mas relaciono outros 104 em meu livro, e a lista continua crescendo. É
assim que a História vai lembrar deste homem: como quem trouxe a Inquisição de
volta, o que é o completo oposto do espírito e dos ensinamentos do Segundo
Conselho do Vaticano. Portanto, acredito realmente que o Papa está deixando seu
posto porque não o suporta mais.
O Vaticano tornou-se um ninho de serpentes. Como teólogo, vejo o
trabalho do Espírito Santo em tudo isso. A Igreja Católica como a conhecemos, a
estrutura do Vaticano, está obsoleta. Estamos nos movendo para além dela.
O que
está ocorrendo é doentio e me refiro, por exemplo, à proteção dos padres
pedófilos. Você pode ver este fenômeno em muitos lugares: com o Cardeal Mahony
em Los Angeles; o cardeal escocês que acaba de renunciar; o Cardeal Law, que
foi elevado após ter saído de Boston, promovido para dirigir uma basílica do
século IV, em Roma; e o próprio Papa, segundo informações recentes.
Estamos tomando conhecimento das coisas horríveis que ocorreram
em uma escola para surdos em Milwaukee, onde mais de 200 garotos, garotos
surdos, foram abusados por um padre, e Ratzinger sabia disso.
O
Padre Maciel, que era tão próximo do último Papa que o levou para passeios de
avião, abusou de vinte seminaristas; tinha duas esposas e abusou de quatro de
seus próprios filhos. Ratzinger soube sobre esse caso por dez anos. Os
documentos estavam em sua mesa, e ele não fez nada até 2005.
A história e a bajulação dos papas, que chamo de ‘papolatria’,
não vão encobrir os fatos. Foram os 42 anos mais sórdidos do catolicismo, desde
o Borgias. Acho que é algo realmente relacionado ao fim dessa Igreja, como a
conhecemos.
Acredito
que o protestantismo também necessita de um reinício. Acho que o cristianismo
pode voltar mais atrás, e se aproximar dos ensinamentos de Jesus, um
revolucionário do amor e da justiça.
É
disso que se trata. E é por isso que tem havido uma resistência tão feroz, na ala
direita. A própria CIA esteve envolvida, especialmente com o Papa João Paulo
II, no esmagamento da Teologia da Libertação em toda a América do Sul,
substituindo líderes heróicos, inclusive bispos e cardeais, por integrantes da
Opus Dei, uma organização fascista.
Tudo
reduziu-se a uma questão de obediência: não se trata de ideias ou teologia.
Eles não produziram um teólogo em quarenta anos. Produziram advogados canônicos
e pessoas que se infiltram onde o poder está: na mídia, na Suprema Corte, no
FBI, na CIA e nas finanças, especialmente na Europa.
Juan González: Em alguns de seus escritos, você sustenta que, no
fundo, os dois últimos papas — Bento XVI e João Paulo II – lideram um cisma e
que, na realidade, agiram para burlar as decisões do Concílio Vaticano II. Você
poderia detalhar este movimento histórico?
O Papa João XXIII convocou o concílio no começo dos anos 1960. O
encontro reuniu todos os bispos do mundo e todos os teólogos, muitos dos quais
haviam vivido sob fogo no papado anterior, de Pio XII. Foi certamente um
movimento de reforma.
Inspirou
os mais pobres, especialmente na América do Sul. Depois deste concílio, o
movimento da Teologia da Libertação e a opção preferencial pelos pobres
decolaram, criaram comunidades de base. Eram um novo jeito de fazer a Igreja,
onde todos tinham voz, não apenas as pessoas no altar.
Esta aproximação não-hierárquica ao cristianismo e ao culto,
muito mais horizontal e circular, foi uma grande ameaça a certas pessoas em
Roma — ameaçou ainda mais à CIA.
Dois
meses depois de elito, o presidente Ronald Reagan convocou uma reunião de seu
Coselho Nacional de Segurança em Santa Fé, Novo México, para discutir um ponto
específico: como destruir a Teologia da Libertação na América Latina.
Concluíram
que não poderiam destruir a Igreja, mas conseguiriam dividi-la. Foram ao Papa.
Deram imensas somas de dinheiro ao sindicato Solidariedade, na Polônia, ao qual
ele estava ligado. E em troca, conseguiram permissão ou — se você prefere assim
— o compromisso do papado em destruir a Teologia da Libertação.
Isso está muito documentado. Por exemplo, por Carl Bernstein,
num artigo de capa da revista Time,
onde ele cria algo como uma hagiografia de Reagan e do Papa juntos.
Bernstein
foi muito ingênuo sobre o que realmente estava acontecendo na própria Igreja.
Parte importante do Concílio Vaticano II era declarar a liberdade de
consciência, considerá-la um direito de todos os cristãos. Tudo isso foi
destruído pelo papa João Paulo II e pelo cardeal Ratzinger.
As reformas do Concílio
Vaticano II estavam se concretizando. Falo de um cisma porque, na tradição
católica, um Concílio é superior a um Papa. Mas nos últimos 42 anos, os dois
últimos papados foram desfazendo todos os valores que o Vaticano II sustentou.
É isso que as freiras estão sofrendo agora. Assim como o
Vaticano atacou 105 teólogos, agora acusa as freiras de, digamos, não
participar da Inquisição. E Deus abençoe essas freiras, as NunsontheBus.
Muitos de nós as conhecemos porque elas têm estado nas linhas de
frente, sustentando os valores do Vaticano II, especialmente os de justiça e
paz, e trabalhando com os marginalizados.
Amy
Goodman: Matthew Fox, por que você foi expulso da Igreja Católica? Você diz que
é por causa da Teologia da Libertação. Explique.
Bem, primeiro eu fui silenciado por 14 anos, por Ratzinger. Em
seguida, tive permissão para falar de novo e então, três anos depois, fui
expulso. Mas ele construiu uma lista de reclamações. Primeira: eu seria um
teólogo feminista. Não imaginava que este fato pudesse constituir uma heresia…
Número dois, eu chamava Deus de “Mãe”. Bem, provei que todos os
místicos medievais chamavam Deus assim; e que a Bíblia também o faz, apesar de
forma menos frequente.
Número três, eu prefiro a expressão “bênção original” a “pecado
original”. Escrevi um livro chamado Original
Blessing (“Bênção Original”
em inglês), no qual provo que nem Jesus, nem judeu algum, jamais ouviu falar de
“pecado original”.
Como
você pode construir uma igreja, em nome de Jesus, a partir de um conceito que é
do século IV d.C.
Sabe o que mais aconteceu no século IV, além da ideia do pecado
original? Foi a conversão do Império Romano ao catolicismo. Se você passa a
comandar um império, o pecado original é um ótimo dogma a difundir. Faz com que
todos fiquem confusos sobre por que estão aqui. Nessa condição, é muito mais
fácil colocá-los sob comando.
Acusaram-me por não condenar homossexuais, o que é claro que não
faço. Obviamente Deus quer homossexuais, ou não haveria entre 8% e 10 % da
população de todo o planeta com essa graça especial.
Disseram que trabalho muito perto dos índios norte-americanos.
Bem, realmente trabalho com eles. Aprendi muito com os professores índios e
seus rituais, tais como saunas, danças do sol, busca de visões. Não sei se isso
é heresia também — eu não sei o que significa “trabalhar perto demais”.
Essas eram algumas das
objeções. E realmente, nenhuma delas se sustentava. São testes
de Rorschach sobre o
que apavora o Vaticano. E acima de tudo, é claro, sobre mulheres e sexo. Essa é
a agenda.
Em qualquer situação onde há fundamentalismo e fascismo, existe
controle. É por isso que o Vaticano, o Taliban e o pastor Pat Robertson têm algo em comum: estão todos
apavorados com a possibilidade de trazer a divindade feminina de volta, e com
isso, é claro, os direitos iguais para as mulheres.
Juan
González: Além da pedofilia, que tem sacudido o Vaticano e toda a Igreja, há
também os escândalos de corrupção no próprio Vaticano. Fala-se da denúncia
produzida por um grupo de cardeais, que investigaram parte da corrupção mas não
vão divulgar nada até o próximo Papa ser nomeado. Você sabe quanto qualquer
desses temas tem a ver com a renúncia de Bento XVI?
Tenho certeza que tiveram. Eu fui informado de que ele recebeu a
denúncia, examinou-a e, seis horas depois, anunciou que estava renunciando.
Pôs-se a salvo e encarregou o próximo papa de lidar com o tema. Penso ser muito
claro que há uma conexão. Há muito mais nos bastidores do que a imprensa já
anunciou, posso assegurar.
Quando Ratzinger fez-se papa,
fui a Wittenberg e preguei as 95 Teses [de Martinho Lutero] na porta. Um ano
e meio atrás, estava em Roma, e as traduzi para o latim — quer dizer, italiano,
e entreguei-as para a basílica do cardeal Law numa manhã de domingo.
Foi muito interessante. Um homem de 40 anos de idade veio a mim,
um romano. Ele me disse, muito simplesmente: “Eu costumava me dizer um
católico. Agora, só me chamo de cristão”. Foi um golpe para mim. Logo embaixo
do nariz do papa, italianos, também, estão começando a compreender a verdade,
estamos em um ótimo momento histórico.
Uma instituição ocidental de 1800 anos está derretendo diante
dos nossos olhos. É doloroso e feio. Por outro lado, é também um momento de
avanço e para apertar o botão de reiniciar no cristianismo, retornando à
mensagem realmente poderosa de Jesus e seus seguidores através dos séculos: os
místicos e os profetas.
Susan
Sontag define “fascismo” como violência institucionalizada. Os católicos têm
passado por violência institucionalizada há 42 anos. Pergunte a qualquer um
desses teólogos que foram afastados de seu trabalho. Alguns morreram de ataque
cardíaco.
Outros,
na pobreza das ruas, porque não conseguiram arrumar emprego. Mas, é claro, fale
com os jovens que foram abusados por padres e acobertados por Ratzinger, que
“protegeu” a instituição às custas de cada uma dessas crianças.
Juan González: Vamos às especulações sobre quem vai ser o
sucessor do Papa Bento XVI, Fala-se muito sobre a possível escolha, pela
primeira vez, de um papa do hemisfério sul. Você ve alguma possibilidade de
mudança real e substantiva na política da Igreja, seja quem for seu sucessor?
É triste dizer isso, mas eu não acredito, porque todos os que
vão votar foram nomeados com aprovação do Ratzinger. Pensam como ele. O
emburrecimento da igreja veio com toda essa crise pedófila. Quando você não tem
líderes inteligentes e com consciência por 42 anos, mas apenas gente que diz
sim, não é possível responder de modo inteligente à crise que emerge quando se
acha um pedófilo em seu meio.
Há um
arcebispo norte-americano — não vou nomeá-lo – que, vinte anos atrás, chorou na
presença de um amigo meu e lhe disse: “Não há um único bispo nomeado nos
últimos vinte anos que eu consiga respeitar”. Bem, agora nós podemos dizer 42
anos.
Por isso, francamente, poucos nomes me vêm à cabeça. Existe este
na África, que por azar é um completo homofóbico, e está endossando todas as
leis recentes de violência homofóbica na África. É o chefe da Comissão de
Justiça e Paz no Vaticano.
Seria
de esperara que não chegasse tão longe. Existe o cardeal austríaco, que é
dominicano e mostrou um pouquinho de independência uma ou duas vezes. Há esse
O’Malley, de Boston, que é franciscano, e portanto não quer ser Papa.